domingo, dezembro 03, 2006


"Ao outro dia, quase chegando a noite, Manuel Gasparim ouve vozes que parecem vir dos quartos ao fundo do corredor. Põe os ouvidos à escuta e percebe, distintamente, as vozes de um homem e de uma mulher. Grita, quem está aí? Várias vezes, muitas vezes, as ninguém lhe responde, e apenas ouve o eco que agora se junta às outras duas vozes. Não compreende aquilo que dizem. Parece que falam uma outra língua ou que inventaram uma linguagem que só eles entendem. São palavras sem nexo, sem significado. Palavras ditas ao acaso. Pensa: talvez estejam a dizer absurdos, como, por exemplo, gosto o e céu vai a casa; amanhã está o rio da rua; ou está bem o dia, mas quero solidão o livro. Palavras que nada dizem a quem as escuta. Avança pé ante pé, muito levemente, apenas se ouvem as tábuas do soalho rangendo, apenas um gemido, mas que o imcomoda. Descalça-se e caminha sobre o silêncio dos seus pés. Pensa: parece coisa do demónio o linguarejar que vem dos quartos. Bate à porta e as vozes continuam, indiferentes à batida, como se apenas ele as ouvisse e só fossem vozes na sua cabeça. Sente-se descer ao abismo que se abre dentro de si, onde está a loucura. Descer ao inferno. Entrar dentro da sombra que caminha a seu lado, olhar a luz da tarde que trespassa a janela do fundo do corredor e projecta a sua sombra, e ele dentro da sombra, como se deixasse de ter espessura, de existir, e fosse apenas a sua sombra. Abre a porta e nem assim as vozes se calam. Sente um arrepio que lhe sobe pelas costas até à cabeça e aí fica, a paralisá-lo de medo. A conversa continua, indiferente à sua presença. Grita qualquer coisa para assustar o medo. Olha para todos os lados, espreita em todos os lugares, escuta todos os sons; e não vê ninguém, não encontra ninguém. Está só no quarto e a conversa continua como se ele não estivesse ali, ou as vozes nascessem das paredes. Vozes sem corpo, sem cabeça, sem boca. Sai do quarto às arrecuas, fecha a porta e corre até ao fundo do corredor. Quando aí chega, deixa de ouvir a conversa. A casa cai no silêncio. E no silêncio apenas se ouve a respiração da casa. Senta-se à escuta e pensa: será que não foi tudo um sonho, uma alucinação? Tem medo de enlouquecer. Medo de si. Sente o medo à sua volta, insidiosoa envolvê-lo, a querer entrar. Uma cara cinzenta, quase verde. Um olho aberto e branco, e outro fechado e fundo. Senta-se numa cadeira, põe as mãos na cara e chora. Chora como choram as crianças."


Joaquim Mestre in O Perfumista

Sem comentários: